Pintura corporal substitui cadáveres em aulas de anatomia
Vantagens do bodypainting, segundo professoras, são movimento, possibilidade de interação e coloração mais adequada da musculatura
Demétrio Rocha Pereira
De costas para uma turma de primeiro
semestre, estudantes todos estreantes numa aula desse tipo, a modelo Roselaine
Cabral serve de suporte para a obra do pintor Euler de Paula Silva. Nua cintura
acima, Roselaine estica os braços, alonga para lá, encolhe para cá, e assim
Cinara Garrido, professora de Morfologia Humana, vai apresentando as
identidades de cada músculo dorsal, não sem antes confiar aos alunos a chance
de arriscar uma resposta certa.
Na Faculdade de Desenvolvimento do
Rio Grande do Sul (Fadergs), é com bodypainting que se aprende anatomia.
— Pensei que seria menos nítido. Já
fiz anatomia com cadáveres em outras disciplinas, quando cursava Biologia, e vi
uma diferença gritante — diz o estudante Régis Cunha, reparando que "o
cadáver sofre ação de químicos e pode ter sido muito manuseado".
— É algo inovador — afirma a
professora Marcia Otero Sanches, assinalando que o método integra uma revisão
de paradigmas no ensino em saúde, implementada após um processo de capacitação
junto a colegas da Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo).
No Estado, além da Fadergs, apenas a
UniRitter trabalha com a ferramenta. Entre as vantagens apontadas está o
movimento, a possibilidade de interação, a coloração mais "adequada"
da musculatura e até aspectos ambientais:
— No início da década de 1990, surgiu
a preocupação com o uso do cadáver, que é conservado em formol, um agente
extremamente tóxico, tanto para quem trabalha nos laboratórios como para o meio
ambiente — aponta Sanches, coordenadora do curso de Enfermagem.
Segundo Juliana
Bredemeier, diretora da Escola de Saúde e Bem-Estar da Fadergs, é sintomático
que estejamos em uma aula de Morfologia Humana. A ideia é integrar
conhecimentos como anatomia, fisiologia e patologia em uma única disciplina,
lançando mão de "metodologias ativas" para quebrar o tabu do aluno
como receptor passivo de informações.
— Quando o aluno
imprime a sua vontade, o seu empenho, falamos de uma dedicação emocional. Por
isso lançamos mão de recursos de encantamento — explica Bredemeier.
Não quer dizer que
a aula é uma ciranda. Esses recursos são acompanhados por estudos de anatomia
digital, apalpatória e de imagem, sem falar no bom e velho livro. A depender do
aprendizado de Euler, convocado no semestre passado para ajuntar pincéis e
tintas a uma sala com esqueletos e manequins de corpo aberto, o método
funciona.
— O artista precisa
entender anatomia, nem que seja o básico. Aqui, acabo aperfeiçoando o meu
próprio trabalho. Tenho feito esculturas de corpo humano, e o que aprendo aqui
vem ajudando bastante. Descobri músculos que achava que não existiam — relata.
Segundo Bredemeier,
as mudanças, iniciadas há um ano, levaram em conta provas de órgãos de classe e
o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). A fragmentação do
currículo, diz a professora, criava uma lacuna entre os conhecimentos complexos
e os mais básicos, aprendidos a inícios de curso, e a formação prática ficava
muito dependente de estágios.
No próximo
semestre, uma ala de enfermagem e um estúdio de estética devem sediar
atividades práticas, inclusive a encenação de conflitos que os futuros
psicólogos devem saber domar. Na área da Saúde, a faculdade oferece os cursos
de Educação Física, Enfermagem, Estética e Cosmética, Fisioterapia e
Psicologia. Em todos eles, as descobertas em anatomia têm um quê de ateliê.
O que dizem os Conselhos
O Conselho Regional de Enfermagem (Coren) faz ressalva à metodologia.
— Entendemos que é meio complicado e que seria importante continuar utilizando cadáveres. Nós, enfermeiros, lidamos com pessoas, nosso erro custa uma vida — aponta o Conselheiro Secretário do Coren, Claudir Lopes da Silva.
De acordo com a coordenadora da Comissão de Educação do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Crefito), Tania Fleig, há uma discussão mundial sobre o uso de peças anatômicas como cadáveres, justamente pela falta deles. Segundo ela, há uma série de fatores a serem considerados antes da substituição da anatomia humana original por uma artificial. O principal deles é a formação dos novos profissionais:
— Será que eles terão condições de se apropriar dos conhecimentos sobre anatomia sem que tenham tido o contato e a aproximação real dela? Esse é um debate já antigo, profundo, porém não finalizado.
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário, pois irá colaborar com as postagens.